Pioneiro na produção e venda de mosaicos e ladrilhos, Hugo Marques (imagem extraída de foto cedida pela Loja Maçônica Estrela de Bandeirantes).

(DE 1930/1950) – QUINQUAGÉSIMA NONA PARTE

Walter de Oliveira*

Continuando com a listagem dos pioneiros do povoado da estação, por ramo de atividade, vamos ao único bandeirantense de então que se dedicava à produção e venda de “mosaicos” e “ladrilhos” – Hugo Marques -, cuja fábrica ficava situada na antiga Rua Quintino Bocaiúva (hoje Prefeito José Mário Junqueira), parte da qual era onde hoje está a loja Val Modas. Ao todo do prédio funcionariam depois a fábrica de bebidas Pacaembu e o Hotel das Baianas.

Esse mesmo pioneiro mantinha ali também a sua “oficina de pintura”; era um profissional polivalente.
Como industrial, Hugo Marques era dos mais competentes, e como amigo (não nosso, eis que éramos então pouco mais que um adolescente, e ele já adulto) era dos mais requisitados, posto que muito comunicativo, criativo e dono de um carisma único, o que o tornava presença quase obrigatória nos acontecimentos sociais de então.

Sob o aspecto conceitual, achamos suficiente lembrar que ao lado de João Francisco Ferreira, Guilherme Sachs, Dino Veiga, Moacyr Castanho e outros nomes importantes, ele integrou o grupo dos fundadores da Loja Maçônica Estrela de Bandeirantes. Ele foi casado com dona Alda Todesqui Marques, que era irmã de Dalter Todesqui Marques, listado em nosso artigo anterior, como pioneiro do ramo de “materiais elétricos” (firma Todesqui e Veiga Ltda.).

O nome da sua esposa (bem como a correção do nome e sobrenome de Dalter Todesqui), informou-nos o registrador público Silmar Cordeiro de Souza, a quem agradecemos. Não obtivemos informações sobre a existência de filhos do casal.

Fatos há, no dia a dia da história de uma cidade, que pelo inusitado e bizarro do seu caráter, não podem deixar de ser registrados; é o caso do que a seguir narraremos. Hugo Marques, apesar de ser a pessoa de respeitabilidade que mostramos, tinha um lado acentuadamente travesso e que quando se mostrava, punha as suas “vítimas” em verdadeiras “saias justas” e/ou “maus lençóis”, pois o que não lhe faltava era a sua capacidade de elucubração mental.

O caso ganhou repercussão e notoriedade, pelo seu “agente passivo”, que não foi outro, senão o juiz de direito Augusto César Viana Espínola, primeiro a dirigir o fórum da nossa comarca, instalada em 1949. Dono de uma proverbial cultura jurídica, o juiz Espínola era também um homem de garbo e elegância, o que lhe garantia notoriedade onde quer que estivesse; imaginemos se somasse a isso tudo, a importância de seu alto cargo. E Hugo Marques, com todo o seu desembaraço e picardia, logo, logo se fez dos mais íntimos de sua excelência, ao ponto de se visitarem reciprocamente em suas residências.

Hugo tinha uma casa com um amplo quintal, no qual, com todo bom gosto, zelo e capricho, ele construíra o que os roceiros (assim chamados os moradores da roça de então), chamavam de “mangueirão”, e que era um espaço, parte cercado com arame e parte cercada com madeira e coberto de telhas. Ali, e sob um regime de permanente cuidado e assistência, ele mantinha uma dezena e meia de cabras leiteiras da raça zebu (de orelhas grandes e caídas) e um reprodutor da mesma raça; as fêmeas eram malhadas em branco e preto e o reprodutor, totalmente preto.

Vai daí – e segundo diziam -, que em uma das visitas do juiz Espínola à casa de Hugo, este o levou para conhecer o seu pequeno rebanho caprino, e quando perguntado o que achara daquela maravilha (que era como Hugo via os seus animais), o juiz tergiversou e terminou deixando escapar que preferia os “parelheiros” dos prados, numa clara alusão aos cavalos “quarto-de-milha” dos hipódromos; foi o “gatilho” para que Hugo Marques começasse a engendrar uma maneira de botar cobro ao agravo feito às suas “joias” (que era como ele via as suas cabras).

O edifício do fórum (onde está hoje a Câmara Municipal), tinha o auditório (local para audiências e júris), e nos fundos, de um lado o gabinete do juiz e do outro, o gabinete do promotor de justiça (à época, o doutor Wilson Piazetta); os oficiais de justiça, Clarismundo Pessonia e José Alves Cabral, se serviam de móveis do auditório para o seu trabalho. Passado não mais que um mês do citado diálogo, Hugo arranjou uma maneira criativa, e por instantes afastou do fórum os oficiais de justiça.

Tão logo esses saíram, a uma buzinada de seu carro, um pequeno caminhão encostava em frente ao fórum e descarregava uma dúzia e meia de cabras – dentre as quais se sobressaía um reprodutor de pelos negros -, todos com as patas envoltas em panos, para abafar o ruído dos cascos, e que foram “tangidos” por Hugo “fórum adentro”, rumo ao gabinete do meritíssimo, que absorvido na difícil tarefa de analisar e sentenciar os autos que lhe estavam conclusos, só percebeu a inimaginável presença daqueles ruminantes graças ao estranho odor que exalavam de seus corpos.

Boquiaberto e com os olhos a saltarem das órbitas, o juiz pôs-se a chamar aos gritos por Clarismundo e Cabral. Inutilmente, posto que ambos estavam fora, por arte e graça de Hugo, que também já havia “se mandado”, tão logo as suas “joias” adentravam o vetusto gabinete do magistrado, para sorte de quem, tratava-se de animais inofensivos, e que apenas por curiosidade, mais se aproximaram da mesa de trabalho da maior autoridade da cidade. Já um pouco refeito do susto, o juiz se acalmou com a chegada dos oficiais, que se apressaram em justificar que estavam “cumprindo mandados”, pois não lhes ficaria bem confessarem que foram vítimas de um logro de Hugo Marques, cuja esperteza bem conheciam.

Logo a seguir – e com o maior ar de inocência – aparecia “o dono” do mini rebanho, se dizendo absolutamente descrente do que acontecera, e adiantando ao já refeito amigo, as providências que iria adotar para reforçar as cercas do “mangueirão”, pondo sua excelência a salvo de um novo e tal dissabor. Depois tudo acabou bem, e no seguinte habitual churrasco de fim de semana, as boas e suculentas “mingas” e “maminhas”, e o impagável chopp bem gelado, ficaram ainda melhores pelo “picante” tempero da história das cabras e do juiz, engendrada pela mente marota (e vingativa) do pioneiro Hugo Marques. Outras tantas comarcas terão também bizarríssimas histórias a serem contadas, mas dificilmente como essa dos anos 50, acontecida aqui no povoado da estação.

Continua.

* Walter de Oliveira, 92, articulista desta Folha, é bandeirantense, nascido em 1932.

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