Cena do filme "Os Últimos Jedi"

O ensino da Medicina sofreu imensa reviravolta com o Relatório Flexner, em 1910, que estabeleceu diretrizes técnicas rigorosas para a formação do médico, com predomínio de formações adicionais e complementares à graduação até os dias atuais.

Nos anos 1970, o Relatório Carnegie alterou sua hegemonia ao postular novos parâmetros para o ensino da Medicina, com introdução precoce dos estudantes na clínica, metodologias de ensino baseado em problemas e direcionamento ao trabalho em atuação comunitária.

A incorporação de novas tecnologias eletrônicas também alterou o campo do ensino médico com a utilização de meios virtuais para leitura e debate, além de trazer alunos mais avançados na graduação para funções de tutoria, diluindo a presença do professor.

Face à complexidade cada vez maior no ensino de Medicina, interrogar os fundamentos da interação entre professores e seus alunos pode ser relevante, visto que, historicamente, esta interação sempre teve importância capital na formação de jovens médicos. Olhada de perto, ela mostra uma diferença entre ensino médico e educação médica ao apresentar a importância da educação como elemento formador e não como mero transmissor do conhecimento.

Nessa perspectiva, a educação médica pode ser compreendida como um conceito mais amplo por favorecer o desejo de aprender. Para tanto, é necessário considerar que há um campo de subjetividades envolvidas na interação entre um professor e seus alunos: a subjetividade docente e a de cada aluno em sua sala de aula. Uma espécie de campo de forças variadas no qual a resultante é imprevisível, pois cada aluno está sujeito tanto ao vetor de sua relação com o professor quanto aos vetores da relação deste com os outros alunos, além de sua própria relação com eles. Panorama dinâmico, para cuja complexidade contribuem as dúvidas próprias do aprendizado teórico e prático.

Isso é particularmente agudo nas disciplinas semiológicas que introduzem anamneses e exames físicos de pacientes, quando se espera do estudante um aprendizado criativo de competências clínicas necessárias ao exercício da Medicina. Nesse momento, quando os alunos começam a se sentir médicos, é fundamental acompanhar os processos subjetivos que fazem parte de seu aprendizado. As imagens culturalmente difundidas sobre a atuação médica, em filmes e séries televisivas, e os conteúdos aprendidos anteriormente no curso, contribuem para a força que esse momento exerce nos alunos.

É nesse momento do curso que a história de vida de cada um – com os problemas vividos e as soluções encontradas – pode fazer muita diferença no enfrentamento dos enigmas apresentados pelos primeiros contatos com pacientes. Nenhum roteiro de anamnese prepara os alunos para a diversidade de falas e reações de cada paciente examinado, com a consequente insegurança sobre atitudes a serem tomadas frente ao inesperado. Aqui, o conhecimento adquirido é testado quanto à sua consistência e à sua relevância.

Nesse contexto do aprendizado semiológico, a interação professor-aluno pode ser considerada um mecanismo institucional importante para a construção do sentimento de ser médico. Talvez seja a ocasião mais propícia para o manejo dos elementos relativos a essa construção, sobretudo por colocar à prova os fatores que determinaram a escolha da Medicina enquanto formação acadêmica. Assim, a função docente na sustentação do desejo em formação é um pilar na formação do futuro médico.

Não é comum que o docente de Medicina tenha formação pedagógica para exercer sua função. Com isso, o peso de sua influência desloca-se da técnica pedagógica para sua posição em sala de aula, incluindo o conhecimento temático, o domínio da técnica e o acolhimento que pode oferecer aos alunos nesse momento de instabilidade construtiva. E a influência também se desloca para o campo da interação em si, pois seu exemplo como docente é matéria de observação atenta pelos estudantes. Por isso, características docentes podem facilitar ou dificultar o engajamento discente no momento em que o estudante desenvolve competências clínicas a partir de seu próprio modo de resolver enigmas que a vida apresenta.

Sobre a interação, dois mecanismos psíquicos se destacam nela dentre vários: a percepção e os processos inconscientes ligados à relação dos alunos com o professor.

A percepção é o processo que organiza e interpreta dados sensoriais para constituir e manejar a consciência de si e do ambiente. É intimamente relacionada à dimensão inconsciente dos processos psíquicos, sendo estes os de maior impacto no psiquismo, porque são encarregados de processar as quantidades de afetos presentes na percepção. Dito de outro modo, as funções de sensação, percepção, atenção e memória são permeadas por quantidades de afetos e/ou sentimentos inconscientes próprios de cada pessoa, cada subjetividade, produzindo estados motivacionais suscetíveis à influência de outras pessoas por ocasião de interações sociais diversas, entre as quais se incluem as relações entre professores e alunos.

Aqui se pode enfatizar o encontro entre a função docente e a história de cada aluno: este traz para a sala de aula uma determinada imagem, uma determinada configuração de si mesmo, inconsciente e construída durante uma vida inteira, reagindo de modos consolidados ao que pode considerar como avaliação e julgamento no olhar dos outros. Este segundo elemento responde pela posição que o aluno supõe depositada no docente quanto a seu rendimento acadêmico e clínico, no caso de disciplinas semiológicas. Aqui, a importância da interação entre alunos e seus professores em sala de aula mostra sua dimensão. É um terreno movediço que convém considerar, pois tanto pode fornecer o substrato onde florescem autonomia e desenvoltura clínicas quanto pode ser matéria tóxica, onde fenecem sonhos e ideais.

A insegurança do aluno pode levá-lo a endeusar o professor, a colocá-lo num lugar idealizado que obtura o que o receio, a falha e as tentativas de superação podem ensinar. É nesse hiato entre o que o professor consente encarnar e o que mobiliza nas fantasias inconscientes de seus alunos que a transmissão possível trabalha, que o amparo ao desejo nascituro produz efeitos de construção de futuros médicos.

A melhor figuração de tais considerações pode ser encontrada na cena de Star Wars, em que um Luke assustado vê Yoda incendiar os textos sagrados Jedi, até que Yoda lhe diz que a biblioteca não continha nada que Rey já não tivesse. Segue dizendo a Luke para ser um mestre de Rey, sobretudo ao transmitir o que falha, o que não tampa o aprendizado com uma figura ideal: “Transmita o que aprendeu. Força, mestria. Mas fraqueza, insensatez e fracasso também. Sim, fracasso acima de tudo. O maior professor, o fracasso é. Luke, nós somos o que eles superam. Esse é o verdadeiro fardo de todos os mestres”. (Fonte: Revista Iátrico/CRM-PR)

*Dra. Wael de Oliveira – Psicóloga e psicanalista, bandeirantense residente em Curitiba. Filha de Elza Ferrer de Oliveira (in memorian) e Walter de Oliveira. Mestre em História  e doutorando em Medicina Interna pela UFPR.  Preceptora no Programa de Residência Multiprofissional em Atenção à Saúde do Adulto e do Idoso no Complexo Hospital de Clínicas UFPR, e membro fundador da Comissão de Psicologia Hospitalar do CRP08, seção Paraná.

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