Tora de peroba medindo 1,80 m x 1,90 m x 3,5 m de extensão, tirada na mata da Limeira/Ibiúna, no anos 1949/1950.

A Beleza e o Fascínio do Sertão

* Walter de Oliveira

A época era o início dos 1900 e a região, o Norte do Paraná. O forasteiro que nela chegasse, vindo das bandas de Ourinhos/SP, atravessava o Rio das Cinzas e entraria em uma mata levantada, de altas e frondosas perobas-rosa e um sem número de milenares árvores de cedro, marfim, cabiúna, canafístula, timburi, figueira branca e pau-d’alho, espécies dificilmente encontradas noutras regiões. Os rios Cinzas e Laranjinha e os seus numerosos afluentes, fartos em peixes, abundantes árvores frutíferas e sua pródiga fauna garantiam o sustento dos Caingangues (da nação Coroados), únicos moradores do lugar, onde caçavam, pescavam ou apenas perambulavam pela selva imponente, hostil e bela a um só tempo. Aliás, a beleza e a hostilidade dos sertões foram a fonte inspiradora de José de Alencar, Guimarães Rosa, Jorge Amado e tantos outros. De fato, é difícil ficar indiferente ante um ipê florido, das aveludadas orquídeas, das discretas e frágeis açucenas e das coroas azul-arroxeadas da flor-do-maracujá, inspiradoras de Catulo. Esses matizes rivalizavam com a colorida plumagem dos pássaros, causa de admiração nos índios habitantes do lugar. Se esses, convivendo com tal beleza, com ela se deslumbravam, o que dizer do forasteiro que ali chegasse, vindo de regiões sem o mesmo encantamento?

Tal fascínio mais aumentava atentando-se para a vida animal, bela e cruel, ao se flagrar a onça-pintada, rainha da mata, esgueirando-se por entre a ramagem e, num espetacular salto, subjugar e abater uma capivara ou um cervo de reluzentes pelos. Mais além, pulando de galho em galho ou balançando-se nos cipós, famílias de macacos e serelepes se divertiam sob o olhar de um carrancudo bugio babão, mas ainda assim belíssimo. Cem braças adiante, o casal de antas, já enfastiado, abocanhava uma e outra tenra e fresca relva. Sobre o chão úmido e sombreado, o urutu cruzeiro, a caninana e outros ofídios, se entregavam, enrodilhados, à sua tranquila e habitual modorra ou deslizavam suavemente sobre a folhagem, à procura do seu “petisco”, enquanto a graciosa coral exibia o seu traje multicolorido, segura de ser a mais bela daquele serpentário.

E a sinfonia dos pássaros!? Ah…! Um espetáculo de fazer inveja ao mais genial maestro. Abria o concerto desses emplumados, o trinado da araponga que, se presa na gaiola soa estridente e fere os ouvidos, tem na imensidão da mata a mais agradável e melodiosa sonoridade. A esse canto seguia-se o contracanto do trio dos inhambus: o guaçu, o chintã e o chororó, sempre a se alternarem. A partir de tal introdução, os pássaros, um a um e no momento certo, como músicos ensaiados, exibiam a sua singular performance: o curió, encantando como sempre e o bem-te-vi, com seu o seu límpido e alentado cantar, era secundado pelo grave canto do urutau e o lamento do tucano (a mais bela ave tropical, segundo o biólogo andiraense João Galdino). Depois era a vez da alegre juruva, outro adorno da mata e do elegante pintassilgo darem o seu show, ao qual se seguia o gemido do gaturamo, que despertava uma saudade pungente e fazia o jaó, eremita do grotão, cantar ainda mais apaixonado, provocando o soluçar da juriti (que segundo Castro Alves, povoava a solidão da mata), que encerrava um musical que em anos não mais se ouviria.

Caída a noite, imperava o silêncio, quebrado apenas por esparsos cantos de aves noturnas, como o curiango com seu mentiroso “amanhã vou”, ou a agourenta coruja. Por fim, o doce e mavioso farfalhar do vento nas ramagens e nas copas das árvores e o rumorejar acariciante dos riachos de cristalinas águas despencando nos pequenos desníveis em seus leitos. Era num cenário de tal beleza e fascínio que viviam os Caingangues, sem suspeitar do fabuloso tesouro que jazia sob os seus pés: a terra roxa e fértil, que a mata ciumenta parecia querer esconder dos da cobiça da estrangeiro e proteger contra a ação devastadora do desbravador, que, de 1880 a 1904, já acontecia em Santo Antônio da Platina, Nova Alcântara (Jacarezinho), Alambari (primeiro nome de Cambará) e que em breve aconteceria aqui também, pondo fim ao paraíso dos Caingangues. Em breve as frondosas árvores que formavam as nossas matas, tombadas sob os golpes dos cortantes machados Collins e traçadores de afiados dentes, dariam lugar aos cafezais, pastagens, culturas de cereais, e posteriormente de cana-de-açúcar e oleaginosas, fazendo o Norte do Paraná um fenômeno econômico mundialmente conhecido. O entusiasmo do agricultor, ante os previstos lucros das safras que se sucediam, impedia-o de ver o outro lado da moeda: o prejuízo decorrente do desmatamento indiscriminado, um fato que ainda perdura, agora contra a Azaleia Amazônica e cerrados, não obstante as advertências de cientistas e os constantes protestos de ecologistas do mundo inteiro, inclusive da própria ONU. A desmedida ambição humana e a falta de informação, reinantes à época da abertura do nosso sertão, falaram mais alto que a prudência; e os governantes de então, interessados na arrecadação de impostos e animados com a dupla perspectiva de arrecadação (da atividade extrativa, com a venda de madeira e das sucessivas safras agrícolas), nada fizeram para minimizar a agressão contra a floresta atlântica paranaense, a mais devastada do país, conforme relatório da OEA. Com efeito, Bandeirantes, município com área de quase 20 mil alqueires de terras (que eram só matas), tem hoje a “Reserva dos Tanakas” e mais uma ou duas restingas, como a da Fazenda Nomura. Cambará e Andirá, estão na mesma situação e Santa Mariana e Cornélio Procópio, com reservas maiores, mas ainda assim, poucas.

Uma ocupação racional e planejada da região à época, poderia ter garantido grandes safras, sem furtar ao homem – como acontece – os benefícios de poder usufruir dos bens e valores que a natureza pode oferecer. Mas nada disso aconteceu, restando esperar que o clamor mundial pelo respeito à mãe-terra faça crescer e fortalecer a consciência ambiental coletiva, e que fóruns e tratados mundiais sobre o assunto, bem como imposições legais, botem um paradeiro nesse tenebroso estado de coisas, pelo que o planeta, o homem e as futuras gerações, agradecerão.

Walter de Oliveira, 88, articulista desta Folha, é bandeirantense, nascido em 1932.

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